segunda-feira, agosto 07, 2006

A minha primeira aula (conclusão)

Cá estou eu para continuar a minha saga dentro de uma sala de aulas.
" - S'tora, pode chegar aqui?
Volto a cabeça e deparo com um dedo espetado no ar. O seu dono tem um cabelo cheio de caracóis alourados e um ar rebelde estampado no rosto. Aproximo-me da carteira dele, tentando imaginar o que me irá perguntar.
- S'tora, já descobri o seu nome - atira ele com um ar atrevido.
Eu nem quero acreditar que ele me chamou para me dizer aquilo - Como é que te chamas? - inquiro para ganhar tempo.
- Lindorfo, mas todos me chamam Lindo. A s'tora também me vai chamar assim, não vai? - pergunta como se estivesse a lançar um desafio. Soam risos na sala e tento sair airosamente da rasteira que ele me passou - Se já descobriste o meu nome deves ter percebido que ainda assim não é tão mau como o teu - fito-o directamente nos olhos grandes e redondos que juntamente com os caracóis lhe dão um ar de boneco e concluo - Portanto, a ti chamam-te Lindo e a mim Mel, certo? - por momentos, acho que fui rude demais e que ele pode ter ficado ofendido comigo, mas ele abre um sorriso largo no rosto e diz em jeito de resposta - Certo, s'tora. Já agora, que idade é que tem?
Apetece-me perguntar-lhe o que é que ele tem a ver com isso, mas mudo de ideia e respondo suficientemente alto para que todos possam ouvir - A idade suficiente para ser vossa professora e por falar nisso que tal se passassemos às regras de funcionamento da sala de aulas? - coloco o ênfase na palavra «regras» e decido começar com o discurso que preparei na véspera - Em primeiro lugar, gostaria que todos fossem pontuais e que não façam dos atrasos uma constante. Quem se atrasar por sistema terá falta no livro de ponto.
- O que é atrasar-se por sistema? - pergunta um aluno com uma expressão enternecedoramente cómica.
- Como é que te chamas?
- Fernando.
- Fernando, custa-me a crer que um aluno do 11ºano não saiba o que é atrasar-se por sistema.
- S'tora, eu sei o que é atrasar-se sempre, mas não sabia que isso é atrasar-se por sistema.
Voltam a ouvir-se risos e eu resolvo não dar muita importância ao assunto. Assim, digo de uma forma natural - Agora já sabes. Em segundo lugar, gostaria que não mantivessem conversas transversais durante a aula e especialmente quando eu estiver a explicar a matéria.
- S'tora, o que são conversas transversais? - a voz pertence ao mesmo aluno e eu começo a perder a paciência. Percebo que ele está a tentar ser engraçado ou, se calhar, a testar os meus limites - Quando tiveres uma conversa dessas, não te preocupes que eu aviso-te - preparo-me para continuar, mas ele insiste - Ó s'tora, mas eu quero saber agora o que é, que é para não a ter.
Alguns alunos atiram-lhe comentários do tipo «Anjinho!» e eu considero que tenho que ser mais firme e directa - Ok, vamos falar de uma forma que todos entendam: não quero atrasos, não quero que falem uns com os outros durante a aula e escusam de me perguntar se têm de ficar o tempo todo em silêncio porque a resposta é obviamente negativa. Quando eu digo que quero silêncio na sala de aulas estou a referir-me, como é natural, ao facto de terem de estar atentos quando eu estiver a explicar a matéria. Como é lógico, eu não faço intenção de passar uma aula inteira a falar sem parar. Irei tentar diversificar as estratégias ao longo das aulas.
Uma aluna de óculos cor-de-rosa põe um dedo no ar.
- Como te chamas? - pergunto.
- Chamo-me Cátia. S'tora, vamos ver alguns filmes este ano?
- Vamos - respondo eu prontamente e logo a seguir penso que tenho de arranjar urgentemente um filme que esteja relacionado com algum tema da matéria.
- Que fixe! - exclamam meia-dúzia de alunos.
- Continuando com as regras de funcionamento da sala de aulas, quando alguém quiser intervir, primeiro põe o dedo no ar, como fez a Cátia, e espera a sua vez pera falar.
Imediatamente surge um dedo e verifico que pertence ao Lindorfo - S'tora, também vamos ouvir música?
- Quem sabe... respondo eu de uma forma evasiva, não querendo outra vez comprometer-me.
- Ó s'tora... - continua ele.
- Dedo!
- Ah! Desculpe - aponta o dedo para o tecto e prossegue - S'tora, de que tipo de música é que gosta?
Fico calada durante uns breves instantes enquanto lhe lanço um olhar contemplativo e mais uma vez resolvo ser directa - A minha idade e o tipo de música de que eu gosto não te interessam.
- Eh Lindo! - gozam os outros
- Que foi? - pergunta ele encarando os colegas e voltando a olhar para mim continua - Não, sabe o que é s'tora... é que eu nunca tive assim uma s'tora... e, prontos, 'tá a ver?
- Não, não estou a ver - digo friamente - Independentemente da minha idade e dos meus gostos musicais sou a vossa professora e, portanto, espero que as vossas perguntas estejam directamente relacionadas com a disciplina.
- Desculpe, s'tora.
- Vamos então continuar e sem interrupções desnecessárias - apresento mais algumas regras e passo sem delongas para os objectivos e conteúdos do programa. Subitamente sou sobressaltada pelo toque da campainha e, espantada, percebo que a aula chegou ao fim. Recolho rapidamente as fichas preenchidas e os alunos começam imediatamente a atirar os cadernos para dentro das mochilas e eu reúno igualmente os meus livros e coloco-os debaixo do braço. Alguns lançam-me um «Até amanhã, s'tora». Suspiro de alívio e consciencializo que sobrevivi ao meu primeiro teste. Enquanto fecho a porta da sala pondero se lidei bem com todas as situações que me surgiram e imediatamente se levantam algumas dúvidas: será que fui antipática demais ou, pelo contrário, terei dado muita confiança? O que é que eles terão achado de mim? Continuo absorta nos meus pensamentos e só volto à realidade quando ouço uma voz que me pergunta - Então, que tal correu?
Olho para o lado e deparo com a Maria João, minha colega de estágio - Olá! Vinha mesmo a pensar nisso. Acho que correu bem.
- Óptimo. A minha também correu bem.
Caminhamos par a par, trocando impressões sobre as respectivas turmas e enquanto isso eu vou olhando de relance para a maneira como ela traja: um tailleur que faria as delícias da minha mãe e a indispensável pasta. Imediatamente estabeleço uma comparação com a minha própria indumentária. Começo a perceber o que é que o Lindorfo queria dizer e dá-me uma vontade incontrolável de rir - Desculpa - digo após soltar uma gargalhada - Acho que estou a libertar toda a adrenalina acumulada durante a aula - Dou mais uma risada enquanto a Maria João me lança um olhar complacente e interiormente penso que me apetece sair dali o mais rápido possível e voltar ao meu mundo."
Hoje fico por aqui. Estou cansada. Fiquem bem.
Love and light!

3 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Que máximo! Um autêntico quadro! És mesmo tu!
Adorei!

11:16 da tarde  
Blogger LoiS said...

Adorei este relato Jade. Deu para entender o que é actualmente uma sala de aula apinhada de gente como eu digo na "idade da parvalheira". Também dou aulas, bem, dou formação a tipos da minha geração e mais velhos. Estou convencido agora que não é tão difícil como a experiência que relataste de dar aulas a tipos do 11.

Pergunto-me sempre, com esses "putos", a estória dos telemoveis deve ser um inferno nas aulas não?

4:10 da tarde  
Blogger AnaCristina said...

Fixe. A minha experiência diz que agiste bem. Aos poucos vão conhecer-te e saber a tua música preferida... e vão achar porreira ouvires o mesmo que eles ou não.

12:06 da tarde  

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