domingo, setembro 03, 2006

Um aluno especial

Em vésperas de começar um novo ano lectivo, as recordações voltam a invadir-me. O meu ano de estágio volta à ribalta e depois de ler alguns posts de outras professoras apeteceu-me retomar as aventuras da Mel. Quem costuma ler os meus posts já sabe que a versão é ligeiramente romanceada. Gostaria também de acrescentar que as minhas opiniões sobre o mundo do ensino foram mudando ao longo dos tempos. Encontrei escolas com óptimo ambiente e pessoas espectaculares.
"Ao fim de uma ou duas semanas de aulas percebi que a escola é um mundinho à parte que não tem absolutamente nada a ver com a minha realidade. Alguns dos meus colegas de profissão são pouco amistosos e alguns chegam a ser mal-educados, pelo menos, de acordo com as minhas regras básicas de boa convivência. Não me parece uma atitude propriamente cortês não corresponder a um bom-dia. Para além disso, foi com decepção que reparei que as conversas na sala de professores se resumem ou à vida escolar ou então aos maridos e filhos. Os outros grupos de estágio comportam-se como um rebanho obediente e também com eles não é fácil chegar à fala. Restam-me as minhas próprias colegas de estágio, mas curiosamente o meu horário não é coincidente com o delas e raramente nos cruzamos, a não ser quando temos efectivamente de reunir. Foi por ter feito esta constatação que resolvi começar a trazer o meu leitor de mp3 para matar os tempos livres que medeiam entre as aulas que tenho que dar, porque a realidade é que apesar de só ter duas turmas, há dias em que tenho que esperar pelo período da tarde para dar a aula seguinte. A primeira vez que me sentei no sofá e coloquei os headphones nos ouvidos, detectei meia-dúzia de olhares a fitarem-me com uma expressão surpreendida. Apeteceu-me imediatamente dizer-lhes que era mil vezes melhor ouvir Nirvana do que ser bombardeada com conversas de tupperware. Fecho os olhos, concentrando-me na música e tentando abstrair-me de tudo o que me rodeia, deixando o meu pensamento vaguear. Passados uns momentos abro os olhos e deito uma olhadela em redor, como para verificar se alguém me está a ler a mente. Noto que um colega me observa mal disfarçadamente e percebo que já não é a primeira vez que isso acontece. Não faço a mínima ideia de qual seja o nome dele, nem qual a disciplina que lecciona, mas também não estou muito interessada nesses pormenores. Torno a cerrar os olhos e delicio-me com a música. Como oportunamente referiu a minha amiga Maria «a vida sem música é como umas cuecas sem elástico». Na sua simplicidade, que é um apanágio próprio dela, a Maria acaba sempre por dizer grandes verdades. Imersa na música, o tempo acaba por passar rapidamente e preparo-me para a última aula do dia. Ao fim de meia-dúzia de aulas com as minhas turmas, o nervosismo inicial desapareceu completamente dando lugar a uma absoluta tranquilidade e é com naturalidade que atravesso o recreio, abrindo caminho entre bandos de miúdos barulhentos do 7º ou 8º ano. A minha turma do 11º ano espera-me junto à porta da sala e mentalmente esboço um sorriso. Como na última aula marquei três ou quatro faltas por atraso, hoje tenho uma comitiva de recepção. De facto, nada como passar à acção, ao invés de ameaçar eternamente e nada fazer. Alguns cumprimentam-me com um «olá s'tora» e o Lindo prontamente vem oferecer-me a sua ajuda para abrir a porta da sala. Respondo-lhe amavelmente que não precisa de se incomodar porque eu sou perfeitamente capaz de abrir uma simples porta. Deixo os alunos entrar antes de mim e depois de todos estarem dentro da sala fecho a porta. Foi uma estratégia que comecei a pôr em acção logo depois da terceira ou quarta aula, quando percebi que muitos deles ficavam na conversa à porta da sala e iam entrando aos poucos o que tinha como consequência eu não conseguir começar a aula enquanto todos não estivessem dentro da sala. Ainda não consegui acabar com a barafunda inicial, mas já aprendi a aproveitar para escrever o sumário enquanto eles tiram e não tiram os cadernos e depois é só ditá-lo quando eles já tiverem sossegado. É o que me preparo para fazer quando ouço um «posso professora?». Levanto os olhos em direcção à porta e deparo com um aluno, numa atitude expectante, com os livros debaixo do braço e um leve sorriso desenhado no rosto bronzeado. Os outros alunos começam imediatamente numa gritaria do tipo «Ei Joka! Tudo bem?». Imponho o silêncio e o Fernando sempre solícito informa - É o Joka, s'tora. O nosso colega que estava no Havai - De repente, lembro-me de efectivamente estar um dia destes a marcar falta ao aluno e os outros me terem dito que ele estava a participar num campeonato de surf no Havai. Na altura, achei que devia ser treta , mas agora, olhando para o aluno em questão começo a achar que devia ser mesmo verdade. Reparo que ele continua no umbral da porta à espera e rapidamente convido-o a entrar e a sentar-se num dos lugares que estão livres. Ele senta-se ao pé de uma miúda morena, de cabelo curtinho todo espetado, que faz um ar derretido e recebe olhares de inveja dos outros elementos femininos da turma.
- Como é mesmo o teu nome? - pergunto.
-Miguel, professora, mas todos me chamam Joka. Se a professora não vir inconveniente também gostaria que me tratasse assim.
Antes de eu poder dizer alguma coisa, o Fernando adianta-se - A s'tora não vê nenhum inconveniente, Joka, porque ela chama-se... - hesita, deita um olhar em redor e continua - Ainda não sabemos, mas todos lhe chamam Mel.
Atiro-lhe um olhar quase mortal e ele imediatamente diz - Desculpe, s'tora.
O aluno em questão sorri, de uma forma que eu interpreto como sendo delicada e eu resolvo dar início à aula - Muito bem Joka. Actualiza-te relativamente à matéria e qualquer dúvida que tenhas estou à disposição."
As aventuras da Mel continuam mais logo. Acho que vou dormir um bocadinho.
Love and light!

11 Comments:

Blogger vinte e dois said...

Houve três situações que me fizeram sorrir no teu post. Sorrir porque duas delas são hábitos que eu tb adquiri ao longo dos anos e a terceira porque me fez recordar um pequeno episódio com o meu 8º ano durante o meu estágio.
Se há uma coisa que eu aprendi com o tempo foi nunca deixar um aviso sem consequência, como tu fizeste com as faltas. Se perante um determinado comportamento de um aluno, eu prometo o respectivo castigo da próxima vez que isso acontecer, faço-o mesmo. E a tendência é o aluno não voltar a repetir a façanha.
Sou tb sempre o último a entrar, fico à porta precisamente porque há sempre alunos que gostam de ficar mais um pouco no corredor na conversa, ou a acabar de comer um chocolate ou um pastel que se lembraram de ir comprar quando deu o toque de entrada. São convidados a arrumá-lo para o terminarem no final da aula.
Do meu 8º ano de estágio, ficou-me sempre na memória uma aluna, muito pequena, quase frágil, com uma delicadeza nos gestos que me despertaram a atençao. E quando eu lhe perguntei o seu nome, com uma voz a condizer com toda essa simplicidade respondeu-me "Lia, chamo-me Lia". Marcou-me, e passado tanto anos, quando me lembro dessa turma, é logo a primeira que me vem à memória :)

3:43 da manhã  
Blogger LoiS said...

Vidas ...

Uma coisa aprendi com os teus relatos. É mais difícil dar aulas, que formação a tipos da nossa geração ou mais velhos.

Noto que este canto está repleto de Profs., o que me faz ter alguma reserva quanto à minha natural tendência - injusta, sei lá - para achar que se trata de uma classe pouco produtiva, demasiado agarrada a regalias, com forte resistência e deficiente adaptação à mudança - generalizei é um facto -

Mas continuas a ser a minha BlogoProf preferida Jade ;)

Bjs

PS. Já vou apanhar, é outro facto !

10:30 da manhã  
Blogger Xica said...

Mais uma história que me prendeu. Acho q nunca conseguiria dar aulas: não conseguia lidar com os alunos, responder-lhes à letra, ter iniciativas p lhes impor os comportamentos certos como tu fazes e logo no ano de estágio. E não devem ser coisas q vos ensinem na faculdade, certo?

11:06 da manhã  
Blogger vinte e dois said...

Pedro:
é realmente. E a fama que os professores têm de não fazerem nada e estarem sempre de férias não passa de um mito. Pode haver alturas em que o trabalho abranda um pouco, mas um prof consegue fazer dias de 12 horas de trabalho ou mais, como já me aconteceu. O problema é que o trabalho em casa não é testemunhado e as pessoas têm tendência a associar o número de dias de férias dos alunos aos dos professores. Eu tive 22 dias de férias em Agosto. Trabalhei até ao último dia de Julho no arquivo de processos e elaboração de turmas e ontem voltei ao serviço. As aulas começam dia 18, salvo erro, mas até lá vou (vamos) ter muito que fazer..

8:45 da tarde  
Blogger LoiS said...

Caro 22:

Eu tenho guerras com colegas por uns dias em Agosto/Natal/Páscoa e afins, alturas que todos querem !!!

Tenho esses mesmos dias de férias, um pouco mais por estar equiparado a profissionais da banca ( 25 dias ) que tu referes. Tenho muitas vezes que preparar a minha jornada de 8 horas do dia seguinte em casa, então quando vou dar formação tenho que fazer isso e ainda viajar de madrugada por vezes para bem longe !!!

Tenho rigorosamente essas 8 horas/trabalho diário 365 dias por ano - 25 dias de férias - feriados.

Entendo que as novas gerações de profs. sofram como tudo; entendo que cada vez sejam mais profs. para menos alunos. Mas olha que a geração que eu conheço de Srs Drs. Profs. ( da minha família ) têm uma santa vida, santíssima: estão nas reuniões familiares sempre em alturas de festa( as tais datas que eu luto para conseguir ); ganham bem para o que fazem; - sim ...porque somadas não fazem 8 horas/dia - vão comer a casa e alguns deles por lá ficam a dormir a sesta e ainda ganham uns valentes cobres com salas de estudo/explicações.

Pá pode ser casmurice minha, mas irrita-me ainda por cima ouvi-los falar das tais horas que deverão ou deveriam preencher pela falta de outros colegas NÃO ENTENDO !!!!

Uns faltam porque lhes dói a unha do pé ( eu até já tive que trabalhar com 40º de febre ), outros não querem ocupar os tempos mortos pq justificam que estão a preparar aulas !!!

Leram o artigo do Expresso deste fds em que o pessoal de leste refere que está a enviar os seus filhos para as ucrânias e afins estudar, porque para eles o pior que temos aqui é a educação ??? Uma até dizia que não entendia porque é que aqui os alunos veêm os profs. como mais uns amigos e não como alguém que devem respeitar e que os ensina !!!

Abraços 2e2 és o Blogprof preferido aqui do je, já que a blogoprof é a "minha" JADE que está a dsiponibilizar este espaço para a discussão, deculpem lá amigos profs, mas à N coisas que eu não entendo !

Jade Love and light darling !

11:26 da tarde  
Blogger taizinha said...

A vida de professor não é fácil mas é muito rica (e aqui a palavra significa tudo menos dinheiro - gasta-se muito em livros, em material...). Desenganem-se os "não profs" que pensam que um professor trabalha e investe pouco.

P.S.- pf, veja os comentários do seu post Ainda havia sol

12:02 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Como sempre relataste na perfeição uma situação vivida por milhares de nós!
Quanto à boa vida dos professores, e isto não é uma indirecta para ti, Lois, é uma directa; eu só pergunto? Mas se é assim tão bom porque é que essas pessoas não experimentam a carreira?
Porque é que não pensam que em todas, todas, as profissões existem pessoas competentes e incompetentes e porque é que ficam muito admirados por a nossa profissão ser dar aulas e, esse facto, fazer com que tenhamos interrupções lectivas quando os alunos têm. E só diz que são demais quem nunca esteve perante 28 alunos durante uma manhã ou tarde ou manhã e tarde! Mais... não sou contra as 8 horas diárias. Querem-nos pôr 8 horas na escola a trabalhar? Quem me dera... desde que não passasse fins de semana inteiros a ver testes, se não trouxesse trabalhos para corrigir no serão à noite, se não me fartasse de inventar estratégias para motivar os alunos de modo a conseguir que, o mais possível, eles se mantivessem atentos. Para além disso, os professores fazem visitas de estudo, organizam festas de escola, promovem palestras, angariam fundos para rechear a escola de mais meios, etc. Para além disso, são psicólogos, assistentes sociais, amigos, etc, etc.
Mas a opinião pública tem razão, nós não fazemos nada porque o nosso horário lectivo é de 22 horas, o que a opinião pública não sabe é que o horário total é de 35 horas e não chega para podermos ser profissionais competentes!!!
Desculpem o tom, mas já não consigo ouvir que nós não fazemos nada!
Desculpa Jade! Beijinho!

12:38 da manhã  
Blogger LoiS said...

Arteminorca:

Adoro uma boa discussão e a partilha de pontos de vista, ADORO!
Não me conheces, passas a conhecer um pouco !

Para tua informação já fui Prof. mas de Pós Graduações, algumas aulas apenas, fora as formações e afins ligadas à minha actividade.

Acumulei essa actividade com a normal actividade profissional e sim...adoro dar aulas ( formação ).

O que vcs têm e vivem a sofrer por isso, é uma classe associativa conservadora, elitista e muito pouco dignificadora da profissão que mais deveria ser respeitada por todos.

O que transmitem para a opinião pública e para tipos como eu, que não sou do meio, é que pouco QUEREM fazer! - salvaguardo-me sempre com a generalização injusta que faço -

Explica a este leigo a estória ( e não história ) das horas mortas e da ocupação dos alunos por profs. que para mim tão tristemente foi atacada pela Vossa classe. Por favor ajuda-me então a mudar de opinião !

Continuarei a opinar aqui os meus pontos de vista apenas e só se para tal a dona do espaço o permitir. Caso contrário terei todo o prazer em abrir espaço no meu canto a este assunto que tanto me interessa.

Diz de tua justiça Jade !

BJS Arteminorca !

12:52 da tarde  
Blogger A Professorinha said...

Jade, essa ideia do mp3 não é má. Já estive numa escola em que levava um livro para passar o tempo pois também tinha que ficar lá umas boas horas para acabar o meu dia.

11:25 da tarde  
Blogger Lord of Erewhon said...

Ainda dá em gótico! JAJAJAJA!!!

9:12 da tarde  
Blogger Klatuu o embuçado said...

Ou pior... :)=

9:13 da tarde  

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