quarta-feira, agosto 09, 2006

A minha paixão pela noite

Continuo numa maré de recordações. Deve ser o efeito das férias. Quando fico muito parada dá-me para relembrar o passado. Todos os nomes são fictícios mas aludem a pessoas reais.
"A minha paixão pela noite começou cedo. «Filha, desliga a luz que já é tarde. Olha que te faz mal ficares até tão tarde acordada» dizia a minha mãe, zelosa, quando eu ainda andava no secundário. Nessa altura, as minhas incursões pela noite dentro faziam-se à custa dos livros que eu devorava num ápice e das histórias que ensaiava escrever e nunca terminava. Quando entrei na faculdade e fui estudar para Coimbra, tinha saído à noite duas escassas vezes e com uma autorização concedida quase por decreto. No meu primeiro ano fora de casa vivi numa espécie de residência para meninas e tinha como senhoria a Dona Cremilde que teria possivelmente oitenta anos e outrora fora uma grande senhora da sociedade coimbrã. A Dona Cremilde tinha uma empregada que era a Maria da Purificação que a ajudava a manter a casa e as suas hóspedes em perfeita ordem. Ao todo éramos dez e a única altura do ano em que podíamos sair sem restrições era durante a semana da Queima das Fitas porque durante o resto do tempo tínhamos que estar em casa, sem falta, à meia-noite. Durante esse meu primeiro ano, despertei para uma outra vida que ainda não conhecia. Arranjei o meu primeiro namorado a sério, perdi a virgindade, estreei-me no álcool e passei a vestir-me toda de preto. Era o meu grito de Ipiranga. Logo que esse ano lectivo chegou ao fim, tratei de procurar um sítio onde tivesse mais liberdade e que pudesse arranjar ao meu gosto. Aluguei um quarto num apartamento onde já viviam duas raparigas, não sem antes ter tido uma grande discussão com a minha mãe que considerava que eu estava muito bem em casa da Dona Cremilde. Tornei-me logo amiga da Maria e da Cláudia e começámos a fazer tertúlias todos os domingos à noite, quando chegávamos de fim-de-semana. Nessa altura, eu estava altamente imbuída de um forte espírito patriótico e lia tudo o que fosse português, desde o inevitável Fernando Pessoa, a José Régio e Mário de Sá-Carneiro. Trocávamos poemas e discutíamos grandes ideais. Depois eu descobri Florbela Espanca e fiquei fascinada com a tristeza quase palpável que emanava dos seus sonetos. Virava as noites a rabiscar febrilmente em papéis e a ouvir The Cure e Smiths. Foi no princípio do meu terceiro ano em Coimbra que tive o meu grande desgosto amoroso: era trocada por uma caloira que acabara de chegar à cidade. Aí, abriu-se um outro mundo e passei a conhecer uma outra dimensão da noite, mais profunda, mais inquietante - a noite dos bares e das discotecas, das festas constantes, dos engates fáceis. À medida que me ia deitando cada vez mais tarde, ou cedo, na perspectiva de quem de quem se cruzava connosco, de saída para mais um dia de trabalho, passei a ir menos à faculdade. A faculdade pertencia a uma outra realidade que já nada me dizia e com a qual não me sentia minimamente identificada. Continuava a gostar do meu curso, mas em casa, lendo os livros aconselhados pelos professores no refúgio do meu quarto, sem ter que me sujeitar a horários ou à companhia de alguns colegas meus devoradores de fotocópias. Passei, assim, a viver muito na noite. Muitas vezes, interrogava-me porque é que a noite exercia este estranho efeito sobre mim. Porque é que o dia não tinha a mesma magia? A justificação que eu dava para isso tinha a ver com a luz; a luz do dia é crua e eu considerava que isso afectava a própria atitude das pessoas. Ficavam todas demasiado preocupadas com as aparências. A luz da noite era companheira de actos mais autênticos e revelava a verdadeira essência das pessoas. Nos meus primeiros anos de faculdade, lembro-me de escrever uma ode à lua. Era um poema um bocado piroso, mas pondo de lado a má qualidade a substância estava lá. A noite encobre, mas também desvela; torna tudo atraente, sedutor mas, por vezes, também mais real e verdadeiro. Hoje em dia, por motivos diversos, já não faço da noite dia mas, de quando em quando, tenho saudades."
Por agora, é tudo. Pode ser que logo volte com mais memórias. Até lá!
Love and ligth!

4 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Oh querida Jade... que desconsolo! Agora que estava agostar tanto! Descreves tão bem as situações, os sentimentos, os ambientes. Engraçado, já me estou a repetir, mas a verdade é que aqui te redescubro e descubro em nós grandes afinidades!! Tão bom, aqui, na calada da noite!!
Beijinho grande, Lu

12:21 da manhã  
Blogger IC said...

Também tenho uma preferência pela noite, a qual foi aumentando até ao exagero à medida que foram diminuindo as obrigações de levantar cedo :)
Mas, vim aqui agradecer a tua visita, conhecer o teu blogue e dar-te as boas vindas à blogosfera "docente" - esta está agora quase em silêncio por ser o mês das férias, decerto nos iremos encontrando a partir de Setembro, nos nossos blogues e nos de outros colegas que costumam animar especialmente debates relacionados com a nossa profissão. Eu até estou por casa, mas quase ausente da escrita, fazendo férias também da blogosfera.
Um beijinho.

1:24 da manhã  
Blogger Xica said...

Antes de entrar p a universidade se não saí, não foi por imposição mas por ser tímida, pouco sociável e porque não tinha como me desclocar à noite p os sítios p onde toda a gente ia (vivo num vila-na altura aldeia-um pouco longe da cidade p quem não pode conduzir e não há transportes públicos à noite). Na universidade saí algumas vezes, mas não tantas como queria. Os meus pais sempre foram os maus melhores amigos, fizeram grandes esforços p eu ir estudar e não os queria desiludir-ainda assim demorei 7 anos p tirar um curso de 5.
Hoje sinto-me um bocado incompleta. Gostava de ter gozado mais. Também gosto muito da noite. Tens razão durante o dia está tudo às claras, todos dissimula as atitudes à noite libertamo-nos mais.
Beijitos.

10:41 da manhã  
Blogger AnaCristina said...

Eu continuo com a paixão pela noite. O sossego para estudar em casa só existia à noite quando as minhas irmãs dormiam, habituei-me a viver assim, a desfrutar da noite, a dar valor a todas as horas do dia. Só tenho pena que as minhas baterias às vezes acabem... senão era non-stop! Aproveito todos os momentos para fazer o que gosto que gira quase tudo em torno do ensino...

12:15 da tarde  

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