Uma regência
Num momento em que o cansaço, o desalento e a revolta têm sido os meus companheiros diários, apetece-me voltar a vestir a pele da Mel e julgar que ainda sou uma estagiária inconsciente com múltiplas possibilidades à minha frente.
"A minha primeira regência correu relativamente bem e a Fernanda elogiou a minha capacidade comunicativa. No entanto, a aula que a Maria José tinha dado uns dias antes foi muito melhor do que a minha, fundamentalmente, porque a Maria José, à custa de muito esforço e dedicação, consegue imaginar estratégias diversificadas para apresentar a matéria, o que acaba por dinamizar a aula. Eu acho que o único ponto fraco dela é o timbre da sua voz que é fininho e irritante. Colocando de parte esse pormenor, considero que ela vai dar uma excelente professora. A mesma observação não posso fazer relativamente à Teresa, que está claramente em pânico, no meio da sala, incapaz de manter a ordem com as suas admoestações em tom maternal e enrolando-se no seu próprio discurso confuso. Eu, a Luísa e a Maria José trocamos olhares entre nós e observamos a Fernanda que, tal como nós, se encontra sentada no fundo da sala e escreve sem parar no seu caderninho de notas, de capa dura, que nós já conhecemos muito bem. Começo a sentir aquela sensação familiar de embaraço por solidariedade e concluo que não vale a pena apontar nada porque a prestação da Teresa está a ser uma absoluta desgraça. Na carteira ao lado, um aluno tamborila com o lápis na mesa e o ruído começa a irritar-me. Deito-lhe um olhar gelado e, em troca, ele pisca-me o olho. Não sei se devo ficar indignada mas, inevitavelmente, acaba por me assomar um sorriso aos lábios que é prontamente imitado pelo aluno em questão. Volto a olhar para a frente mas passados breves instantes, volto a deitar-lhe uma olhadela dissimulada. Ele tem o cabelo comprido e encaracolado, olhos negros e roupas largas e escuras. A turma é de Artes e eu penso logo que ele tem um verdadeiro estilo de artista. Finalmente o tormento da Teresa chega ao fim e todas nós suspiramos de alívio. O aluno-artista lança-me um sorriso e despede-se com um «tchau, aí!» ao qual eu correspondo, bem-educada, com um «adeus». Acodem-me à lembrança as palavras cautelosas da minha mãe, sempre preocupada com tudo. «Vê lá filha, não dês muita confiança aos alunos; olha que eles têm que te respeitar». Faço uma rápida retrospectiva, tentando avaliar se tenho dado, nas próprias palavras da minha mãe, muita confiança aos alunos. Por vezes, digo coisas das quais depois me arrependo, mas essa forma de agir tem a ver com a minha impulsividade. A ponderação não é uma das minhas virtudes. A Fernanda lembra-nos que temos de reunir para fazer a apreciação da aula da Teresa e juntas dirigimo-nos para a sala que funciona como gabinete do grupo de Filosofia. No seu jeito calmo, a Fernanda começa a tecer algumas considerações acerca da aula e, de um a forma objectiva, aponta-lhe os aspectos onde ela falhou. A Teresa acena afirmativamente com a cabeça, consciente de que as críticas são justas e adianta, como explicação para o que se passou, o nervosismo que a assaltou por saber que estava a ser observada e avaliada. A Fernanda pede a nossa opinião e nós, a contra gosto, porque é sempre complicado falar de alguém que está nas mesmas circunstâncias, acabamos por corroborar as ideias gerais dela. A Teresa está visivelmente cabisbaixa e nós consolamo-la, dizendo que a próxima correrá certamente melhor. A Fernanda termina a reunião, relembrando-nos da importância de termos o nosso dossier de estágio perfeitamente em ordem porque no final do mês teremos a primeira visita do formador da universidade que virá para assistir às nossas aulas. Uma onda de pânico invade-nos e eu sinto aquele típico ardor no estômago. Despedimo-nos umas das outras e eu encaminho-me para a sala de professores para navegar um pouco na net. Resolvo visitar pela quinquagésima vez o site do carro que eu quero, ou melhor, do carro que posso ter, oferta dos meus pais. Os pais são engraçados: dizem-nos que podemos escolher um carro, mas depois impõem uma série de restrições e nós acabamos por escolher não aquilo que queremos, mas aquilo que eles subtilmente sugerem. Penso, com pena, que vou mesmo ter que dizer adeus ao carro dos meus sonhos e ficar com a realidade, bem menos atractiva mas muito mais baratinha."
Agora já estou melhor. Fiquem bem!
Love and light!
16 Comments:
As regências... eram a minha dor de cabeça, para ser mais preciso, a minha dor de barriga. Quando chegava a minha vez, os dois dias anteriores eram passados quase sem comer pq o meu apetite, ou a falta dele, não o permitia. E depois vinham as dores de quem passa demasiado tempo quase sem se alimentar.
Fizeste-me relembrar o temível "formador da universidade". Durante o ano lectivo todo, foi-nos prometida a visita desse senhor, mas nunca chegou a aparecer :)
Regência é a avaliação de um estagiário por parte dos seus colegas, percebi bem?
Deve ser difícil. Se o colega até se consegue safar tudo bem, mas se pelo contrário (como foi o caso) não se consegue desenvencilhar...
Xica,
regência é darmos aulas numa turma da nossa orientadora de estágio. Nessa aula, somos avaliados por ela e pelos nossos colegas de estágio.
É o problema normalíssimo das avaliações e seus traumas associados.
Na vida estamos em avaliação constantemente. Neste caso, a minha solidariedade para com a avaliada !
Gostei da prosa, corrida e muito visual. Não dará para aprofundar um pouco mais essa temática sobre as relações profs/alunos ?
Abraços e Bjs Profs.
Lois,
A relação alunos/profs dá pano para mangas. Tenciono postar alguns textos onde falo com mais detalhe dessas relações (na minha versão romanceada, inspirada pelo que fui vendo e vivendo nos últimos anos)
Beijos!
Olá querida Jade!
Não tive regências. Fiz estágio via Universidade Aberta. Estágio meramente teórico. Foi pena, quando a orientadora é uma pessoas consciente e boa profissional pode-se aprender muito. Assim, fui deitada às "feras" no final do curso, numa terra a 150 km de casa, sem conhecer ninguém, sem cadeiras pedagógicas na faculdade, etc, etc. Quando me lembro das minhas primeiras aulas tenho um misto de vergonha e de sentido de ridículo que me faz ter pena dos alunos que, então, apanhei. Ao mesmo tempo essa sensação deu-me energia para buscar a perfeição. Ainda não consegui, provavelmente nunca conseguirei mas ao fim de 22 anos o resultado não é mau. Uma coisa tenho a certeza, apesar das contrariedades, adoro dar aulas e gosto muito do convívio com os adolescentes. Estes dois factores penso que são fundamentais para a tal realização profissional que tantos procuram.
Desculpa o longo texto!
Como sempre consegui visualizar o teu estágio!
Beijinho, Lu
Mais uma cretinice estapafúrdia do nosso sistema de ensino. Bom fim de semana e parabéns tens um excelente blogue.
Visconde,
O carro ambicionado não era nada demais; era um Alfa Romeo. Como esse estava fora do orçamento estabelecido pelos meus pais, fiquei nos italianos, mas numa opção mais soft: um Lancia. Durou oito anos e nunca me deu problemas. Ainda tenho saudades dele!
Uma vénia!
Arte Minorca,
Sei como foram os teus primeiros anos de aulas. Lembras-te de nos teres contado as tuas aventuras numa escola longínqua? Imagino que sem o estágio seja muito mais díficil, mas também considero que não se aprende grande coisa no estágio. O fundamental é mesmo ter uma pessoa que nos dê apoio e nisso a minha orientadora era espectacular.
Um beijo!
Barão de Tróia II,
Obrigada pelo teu elogio ao meu humilde blog. Não sei se te referes ao estágio ou às regências, mas as regências, sim, são uma estupidez. O estágio nos moldes em que eu o fiz também não fazia muito sentido.
Cumprimentos!
Olá amiga! Como sabes também passei por experiências semelhantes. Felizmente os anos de serviço vão passando e quando recordamos os primeiros tempos... quanta ingenuidade, quantos sonhos - uns realizados, outros nem por isso.
Beijos saudosos.
Adorava as minhas regências, os miúdos eram um espectáculo, o que já não posso dizer das orientadoras de estágio :(.
Beijos e força!
Não perguntes porquê mas este teu texto fez-me recuar muitos anos...uma aula de Direito Comercial (anos 70) curso nocturno...professora nova, alguns alunos muito mais velhos que ela, e naquele dia, naquela aula, a Professora estava a ser avaliada por dois senhores...julgo eu que um tinha a ver com o ensino e outro, funcionário da esola era.... "Bufo". Bom fim de semana.
"Fugi" para o superior quando percebi que me faltava muito para dar aulas aos mais novos, não tinha nenhuma formação pedagógica a não ser o bom senso. Tive um delegado fabuloso (foi ele a minha regência...). Na universidade essa componente não faz menos falta, mas os miúdos são já suficientemente crescidinhos para colmatar as falhas dos professores (pelo menos eu acredito nisso). Bj
Oi Jade, cheguei por aqui por meio do blog da Taizinha. Gostei do dela, vasculhei e gostei do seu. Sou professora universitária aqui no Brasil e, de certa forma, a Taizinha me instigou ao dizer que nossos ensinos são muito parecidos. Visitando seu blog, e outros, fiquei entristecida ao constatar que, sim, enfrentamos aí e aqui, realidades semelhantes. Parte de mim queria que em algum lugar o ensino fosse melhor respeitado. Os professores, inclusive. Ao menos tu tens turmas de 30 alunos. As minhas passam o número 100. Um abraço, Fernanda.
Venho desejar um bom fim de semana.
So para te avisar que decidi por uma ligação directa dos meus Universos p aqui...
Espero que nao te importes...
Beijitos e bom fim de semana!
Olá,
Vim hdeixar-te um carinho, gostei muito do que li, voltarei mais vezes.
Será que na vida não vive
quem na vida já viveu?
Ou será que terá vida
quem nesta vida sofreu?
E eu que morri e que vivo
dentro do mundo que passou,
nos versos que não morrerão
após rasgar a vida
irão lembrar quem chorou!
Um bom domingo!
Beijos
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