Uma paixão
Vou hoje recuperar a Mel e as suas aventuras. Como a acção narrada se passa no final do 1º período, a explicação freudiana é óbvia: trata-se de um acto falhado. O que eu queria mesmo era estar a terminar o 1º período.
"Sempre que penso na relatividade do tempo, acode-me à lembrança "A Persistência da Memória" de Dali. Quando tomo consciência, percebo que estou no final do 1º período, mas se olhar para trás, ainda ontem era o primeiro dia de Setembro. Tive a minha primeira aula assistida pelo formador da Universidade, que não correu bem nem mal; convidei, pela primeira vez, um aluno a sair da sala de aula (o Bruno, um aluno gordinho do 10º ano que gosta de medir forças comigo) e estou, pela primeira vez na minha vida, a decidir uma pequena parte do futuro dos meus alunos, no complicado processo que é atribuir classificações de zero a vinte. É o que eu faço neste preciso momento, sentada numa mesa redonda do polivalente, com o dossier do professor aberto à minha frente e um café ao lado. Não é usual um professor sentar-se ali, por isso, os poucos alunos que por ali circulam, olham-me com algum espanto, mas eu prefiro enfrentar os seus olhares de surpresa do que ouvir as intermináveis histórias das minhas colegas ou, então, ser pela vigésima vez, convidada a contribuir para mais uma campanha "não sei das quantas", por uma implicativa colega de Educação Física que acha que as pessoas não têm mais nada para fazer ao dinheiro. Comparo mais uma vez as classificações de dois alunos, acerca dos quais tenho dúvidas, e mantenho uma certa preocupação, temendo não estar a ser completamente justa. Mordisco a ponta do lápis, num claro sinal de indecisão, e espero que desça sobre mim alguma luz que me ilumine, mas o que subitamente sinto é precisamente uma sombra. Ergo os olhos e deparo com o Lindo, parado à minha frente. Instintivamente fecho o dossier e espero que ele se decida a dizer alguma coisa. Noto algum nervosismo estampado no seu rosto e interrogo-me sobre o motivo dele estar ali especado a olhar para mim.
- Posso falar consigo, s'tora? - resolve-se ele finalmente.
Resolvo jogar pelo seguro - Se é por causa da tua nota, é melhor esperares pela aula para conversarmos acerca desse assunto.
- Não é por causa da nota. É uma outra coisa.
Olho surpreendida para ele e penso que outro assunto é que ele pode ter para tratar comigo e que o deixa à beira de um ataque de nervos. Ele puxa uma cadeira e senta-se mesmo à minha frente, apoiando o queixo entre as mãos. De repente, uma terrível suspeita começa a apoderar-se de mim e começo a sentir-me horrivelmente desconfortável.
- O que tenho para lhe dizer é particular.
As minhas suspeitas adensam-se e recosto-me na cadeira numa tentativa de aumentar a distância entre nós.
- Certamente já reparou que eu gosto muito de si...
Resolvo interrompê-lo - Ainda bem. Gosto que os meus alunos gostem de mim.
- S'tora, eu gosto de si de uma outra maneira.
Tremo só de pensar no que se seguirá, mas não me ocorre nada de inteligente para dizer.
- S'tora, estou apaixonado por si.
Levo um susto e apesar de já estar praticamente a adivinhar o que ele ia dizer, espanta-me a audácia dele. Percebo que a bola está agora do meu lado porque depois de fazer aquela revelação, o Lindo fechou-se num silêncio pesado. Decido abordar o asunto diplomaticamente - Lindo, provavelmente estás a fazer uma grande confusão. É natural os alunos sentirem alguma admiração pelos seus professores...
Ele abana energicamente a cabeça - S'tora, isso aplica-se a miúdos do 7º ano. Eu tenho 19 anos e sei muito bem o que é estar apaixonado.
O argumento dele desarma-me mas não me posso dar por vencida - Ainda assim. Eu penso que estás a projectar em mim... - mais uma vez não consigo acabar a minha frase.
- Eu ando sempre à sua procura para ver se a vejo. Aos fins-de-semana sinto a sua falta e não paro de pensar em si, portanto, gostava que me levasse a sério.
Vejo que não tenho escapatória possível e que vou ter de falar a mesma linguagem que ele - Olha Lindo, em primeiro lugar, acho que a escola não é o local mais adequado para ter esta conversa, mas já que tomaste a iniciativa eu vou dizer-te o que penso.
Ele suspira fundo, certamente ansioso por saber o que eu vou dizer a seguir e eu prossigo implacável - Respeito o teu sentimento mas deves saber que ele não é correspondido. Gosto de ti como gosto de todos os meus alunos, mas nada mais do que isso.
Ele morde os lábios e eu sinto uma certa pena dele mas não sei que mais lhe posso dizer. Ele acaba por me poupar esse trabalho - Se eu não fosse seu aluno era possível gostar de mim?
É a minha vez de suspirar - É uma questão que não se pode colocar nesses termos.
Ele esboça um gesto de desalento com a mão - Em conclusão, não sou correspondido.
Admira-me que só agora ele tenha inferido isso, mas ainda assim resolvo reforçar a sua brilhante conclusão - Não, não és correspondido.
Durante um momento ele olha-me com aquela expressão de cachorrinho abandonado e eu volto a sentir uma certa dose de pena. Ele afasta a cadeira da mesa e levanta-se devagar - Desculpe qualquer coisa, s'tora.
Eu acompanho-o com o olhar e vejo o seu ar cabisbaixo ao abandonar o polivalente. Quando finalmente desvio os olhos, deparo com outro aluno que, do extremo do pavilhão, me fita insistentemente. É o Joka, o meu aluno surfista, e a sensação que eu tenho é que fui apanhada em falta. Pego rapidamente nas minhas coisas e saio dali em passo apressado. Não sei muito bem explicar porquê mas, de repente, sinto que o meu dia está irremediavelmente estragado."
Continuarei oportunamente (ou quando tiver tempo) as aventuras e desventuras da prof virtual.
Love and ligth!
22 Comments:
Tou a ver, o melhor mesmo era já estarmos no fim do 3º período. Boa semana.
LINDO Jade ...
Eu pelo menos não tive coragem de confessar o mesmo à minha prof de Matemática e ainda hoje me arrependo ( lol ). É que o exemplo do meu primo "believe it or not" foi o de um amor correspondido ( tinha ele 17 anos ).
LINDO, entrámos num caminho perigoso Jade. E terrívelmente atraente ;)
Beijos e Love and Light para ti !!!
Lois, sejas bem aparecido! O que se passa com o teu blog? Quando tento aceder aos teus comments aparece uma mensagem a perguntar se quero ver os items não seguros...
Ainda bem que gostaste da minha pequena narrativa. Perigoso porquê? Não gostas de coisas perigosas?
Love and light também para ti!
E adoro, tenho receio é que os teus convidados não gostem, já que esta casa é tua. Quanto a ti ... estou à vontade ;)))
Pá, a m* do meu Blog está uma treta, nem imaginas as "cambalhotas" que tenho que dar para Postar. Bolas para a versão Beta do Blogger.
Aliás, tens 4 comments meus repetidos no teu post anterior, nem sei como o fiz!
São situações complicadas tendo em conta que são jovens que perante um "não" podem levar as suas frustrações até ao extremo. No meu primeiro ano logo após o meu estágio tb passei por várias situações semelhantes. Mais complicadas talvez porque toda a escola tomou conhecimento dos avanços dessas minhas alunas, que em nada eram discretos e que elas também não se preocupavam muito em esconder. Penso que consegui dar a volta à situação da melhor maneira, mas realmente fica sempre uma sensação estranha dentro de nós.
Julgo que todos os professores testemunharam ou tiveram conhecimento de casos de paixoneta professor/aluno (não necessariamente por esta ordem...). Pode ser perigoso e hoje em dia com o "despudor" dos miúdos pior. É preciso muito Light and Love (agora sim, por esta ordem)...
Gostei muito da pequena narrativa. Beijinhos. T
22
Quer então dizer que despoletaste paixões assolapadas nas tuas alunas?!!! Agora a sério, realmente com o atrevimento dos nossos adolescentes de hoje podem eventualmente criar-se situações complicadas. E depois, o facto de não ser correspondido pode levar a manobras perigosas como, por exemplo, o assédio sexual. sendo tu homem, imagino que seja mais complicado. Tive um colega, extremamente sério, que foi acusado de assédio por uma aluna. Sabes porquê? Porque tinha o hábito de pousar a mão no ombro dos alunos quando se abeirava deles para explicar alguma coisa. Vivemos tempos perigosos...
Um beijo!
Taizinha,
De certa forma, o meu comentário ao 22 já diz tudo. Há, de facto, muitos casos de alunos pretensamente apaixonados por professores, mas o contrário também acontece. Sei de alguns casos e presenciei um. Uma situação muito complicada porque penso que acima de tudo tem que estar o profissionalismo e a ética.
Obrigada pela visita!
Beijinhos!
Mais, na faculdade tive um professor que era casado com uma ex-aluna. Tal facto era publicitado por todos.
Mas a Jade tocou numa outra questão terrível, o assédio sexual.
Lidar com adolescentes é realmente muito complicado, e qualquer gesto, palavra pode ser interpretado de forma errada.
No caso das minhas alunas, eu tinha naquela altura 20 e alguns anos, portanto ainda era novito e quando aparece um professor novo em todos os aspectos numa escola,este pode de facto despertar nalgumas alunas uma paixoneta própria da idade apesar da idade delas oscilar na altura entre os 16 e 19 anos. A mais novita passava o tempo a olhar para mim nas aulas, por vezes completamente alheia ao que eu estava a dizer. As colegas atiravam-lhe piadas. Eu estava a par da situação mas nunca dei a entender. No final do ano, mandou-me entregar uma carta por uma colega a pedir-me para eu deixar tudo e fugir com ela. Santa inocência! :D
Havia depois um grupito de 3, que não se largavam, nem nas aulas nem no recreio e que esperavam por mim à saída das aulas e na entrada, no caminho que costumava percorrer entre a sala dos profs e e os blocos (até já sabiam o meu horário). Sempre que me viam, começavam as 3 com um pssssst para eu me virar e alguns piropos. Nas aulas nunca me incomodaram. Os meus colegas baptizaram-nas de meninas do spray :)
Mas enquanto estas se limitavam a isso, apesar de toda a escola ter reparado, a última e a mais velha de 19 anos, já foi mais complicado. Ou por ser maior de idade e estar à vontade nesse aspecto, ou por saber que afinal, até nem tinha assim uma diferença de idade tão grande comigo, já era muito mais ousada ao ponto de me pedir directamente várias vezes se podia ir ter comigo ao meu quarto (eu estava longe de casa e tinha um quarto alugado). Descobriu onde eu costumava ir tomar café à noite e aparecia por lá de vez em quando para meter conversa comigo. Tratava-a como uma aluna igual às outras, sem nunca ir atrás da conversa dela. Nisto tudo, o mais complicado em relação a ela era nas aulas onde por vezes ela não se inibia de mandar alguns piropos por vezes um bocado fortes e que apesar dos meus avisos, ela não deixava. Chegou ao cúmulo, e foi isso que me incomodou mais, de por duas ou três vezes ir para a sala de aulas de mini-saia rodada, e de se sentar no fundo da sala. Quando por uma razão ou outra olhava para ela, ela simplesmente afastava as pernas e olhava-me directamente nos olhos. Coloquei alguns dos meus/ minhas colegas a par da situação e entretanto o final do ano lectivo chegou e mudei de escola.
Como eu referi no início, são sempre situações delicadas para o professor, mas cheguei à conclusão de que, sempre que se pode e desde que a situação não ultrapasse determinados limites, a melhor solução é simplesmente ignorar. Não se pode exigir a alguém que deixe de gostar de outra pessoa e a melhor forma de fazer uma paixoneta passar, é precisamente dar a entender que não passa disso e que a outra pessoa não está interessada. Depois o tempo encarrega-se de resolver a situação..
Ups, cheguei atrasada! Já foi tudo dito! Complicado, muito complicado! É por isso que a idade madura oferece mais calma...
Beijinho grande! Lu
22
De facto, deve ter sido uma situação muito complicada porque qualquer atitude que tu tivesses podia ser levada para outro campo. No entanto, trabalhei com um colega em que a situação era diferente. Tinha que se conter para não fazer uma qualquer parvoíce. Dizia-me ele « o que é que queres? Elas vão para as aulas com um umbigo à mostra... Um homem não é de ferro». Verdade seja dita que ele só dava aulas ao 12º ano e como nós bem sabemos muitos alunos nesse ciclo de estudos já têm uma idadezinha. A existência de paixões ou paixonetas entre alunos e professores despertou em mim a vontade de escrever uma história. É por isso que volta e meia regresso às aventuras da Mel.
Um beijo!
Querida Jade, então a menina já sabe pôr música no blogue?! Como se faz? Adorava poder pôr música e videos, mas não sei!!
Por falar em dar música... Já viste a alteração em relação aos artigos 102? Podemos meter cinco por ano, mas em tempos não lectivos e durante as interrupções lectivas!!!
Beijinho, bom feriado! Lu
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Gosto deste blog, é daqueles em que se lêm os posts e se gosta... lêm-se os comentários aos posts e gosta-se... saltita-se para os blogs dos comentadores e gosta-se...
É, em suma, um blog "gostável" - pensei em escrever adorável mas por causa da temática, e com tantas referências a assédios, não quero fazer nada que possa ser mal entendido por parte de tão interessante espécime do (meu) sexo oposto!
Ainda agora comecei a minha actividade de professor por isso apenas intuo as dificuldades inerentes à profissão. De qualquer modo nunca terei uma turma de 20 ou 30 alunos à frente, sou músico e hei-de dar aulas de música, por isso os tipos de relações serão diferentes, mas logo darei conta dos problemas relacionais.
Em qualquer dos casos, mais relidade ou mais ficcionada gostei muito da Mel e das suas histórias!
Amiga Minorquinha, é muito fácil pôr a música. Vais ao Song2Play, registas-te, escolhes a música que queres e copias o código para o teu modelo. Eu colei o meu código quase no fim do meu modelo, mas a intenção era colocar ao lado da minha lua só que não o consegui fazer.
Relativamente às faltas, se tiveres uma avaria no carro como é que justificas? Isto é de morrer: faltas dadas fora dos tempos lectivos e nas férias?!!! Anda tudo a gozar connosco e nós a vermos...
Bom feriado!
Como será ser prof de Filosofia hoje? Interrogo-me, talvez por não conseguir adivinhar que os alunos encontrem o gozo da especulação ou da história.
(Desculpe se não comenta o que disse)
Que situação tão interessante.
Tem força, não é?
Parece-lhe que o aluno podia estar a encenar?
Para uma plateia dissimulada; ou mesmo só para o tal colega...
Pirata-vermelho
O post conta uma história por mim inventada e acerca da qual já escrevi outros posts. Certo é, que algumas situações partiram ou de experiências que vivenciei ou de situações a que assisti.
Relativamente à questão colocada, ser prof de Filosofia é, para mim, aquilo que define a min ha essência. Não me imaginaria a ser professora de Português ou de Física. No que diz respeito aos alunos, há de todos os tipos: aqueles que ainda que partam com o pé atrás acabam por gostar da disciplina e aqueles que não adianta sequer fazer o pino, aliás, como em todas as disciplinas.
Cumprimentos!
Por acaso já tive um aluno apaixonado por mim, ou melhor, bem ...dois... heheeh... Um deles tinha 18 anos e pediu-me em casamento ehehhe, o outro tinha 15 anos.
Beijinhos
Todos nós temos as nossas histórias. Esta que aqui contaste, fez-me recordar (novamente) uma professora de Economia Política nos finais dos anos setenta...a turma toda (só de homens) andava completamente "maluca"...alguns dos alunos tinham mesmo idade para serem pai dela...esperávamos por ela para ajudar a levar a pasta, ofereciamos flores (eheheheeh)e faziamos questão de a acompanhar ao carro quando a aula acabava tarde(curso nocturno). Só passado muito tempo é que viemos a saber que na altura, a nossa "setora" namorava com um aluno de outra turma :-0) Bom...também podia aqui falar de uma estagiária que em plena entrevista disse que ia para a cama comigo se eu arranjasse a colocação na empresa , ooops ;) Histórias, histórias....tantas.
Professorinha e Aflores,
Ai os meninos a despoletarem paixões intensas!
Beijinhos para os dois!
História bonita... e tantas vezes real.
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